Nuno Pires
Norteado pela importância da transmissão de conhecimento, Nuno Pires consagrou a primeira parte da sua longa carreira profissional ao ensino. Poderia dizer-se que a vida deste transmontano de alma e coração sempre foi sobre segundas oportunidades. Isto porque, depois de lecionar em várias escolas, no meio rural e urbano, durante quatro anos letivos, no ensino básico regular, foi na cadeia de Bragança que Nuno Pires escolheu trabalhar. Primeiro, no âmbito da Educação de Adultos/Ensaio Recorrente, depois como Técnico Superior, tendo atingido o topo da carreira como Assessor Principal de Reeducação, após ter transitado para o Ministério da Justiça. Assim, ao longo de várias décadas, fez questão de pegar nos "rejeitados", naqueles que estão à margem, nos ditos "marginais da sociedade", e dar-lhes um propósito, equipá-los com os meios, as ferramentas e os conhecimentos básicos para que ao saírem de entre os muros da prisão pudessem singrar enquanto pessoas, enquanto indivíduos inseridos numa comunidade.
Descrito como um profissional com um "profundo sentido de dever cívico e de intervenção social", o atual diretor do Estabelecimento Prisional de Bragança, cargo que assumiu a 1 de dezembro de 2022, dando sequência a cerca de uma dezena de anos como adjunto/substituto do diretor, sempre foi um devoto amante das artes e das letras conhecido, um ávido consumidor de literatura e um género de aventureiro nos meandros da escrita, Tanto assim que, em julho de 2018, Nuno Pires apresentou, publicamente, em estreia absoluta, o seu primeiro livro, intitulado "Espelho Público". Uma compilação de textos "de opinião", sobre os mais variados temas, escritos entre 2010 e 2017 e cuja publicação representou o concretizar de um sonho, de "um desejo" e de "uma realização de vida", testemunhou, na apresentação da obra, ao Mensageiro de Bragança, jornal onde, aliás, havia publicado muitas das crónicas reunidas, posteriormente, naquele que seria o seu primeiro livro.
Contudo, o autor transmontano, sempre dominado pelo desejo ardente da escrita, ao longo de toda a sua vida, decidiu dar continuidade "ao sonho" e, bem recentemente, no último dia do mês de março, a Biblioteca Municipal de Bragança serviu de palco à apresentação da obra "Amar a terra, partilhar a saudade". Esta última antologia de crónicas baseia-se em temas tão distintos como a vida no campo, as tradições inscritas na terra que o viu nascer, bem como "as emoções das suas origens", descreve. Uma obra de identidade, de memória, que espelha, na sua génese, a sua íntima ligação a Trás-os-Montes e que sumariza, numa espécie de repositório, uma série de textos escritos para diversos órgãos de comunicação social como o Observador, o Jornal de Notícias e o Mensageiro de Bragança.
Para além de autor e de colaborar na edição de outras obras, Nuno Pires é conhecido pelos suas aventuras no mundo dos versos, das estrofes e das rimas, preparando-se para publicar o seu primeiro livro de poesia.
FAZER AGUARDENTE!...
Quem viveu de forma participada e intensa as diversas tarefas agrícolas e mantém com o meio rural uma ligação “umbilical”, nunca esquece o passado, mantendo-o sempre atual. Com efeito, também eu me incluo nesta forma de ser, pensar e estar, não obstante acontecer no meio citadino a sustentabilidade do meu laborar.
Tendo crescido num meio familiar em que a agricultura era o sustento da casa, acabei por participar nas múltiplas atividades agrícolas inerentes.
Naturalmente que guardo boas e menos boas recordações de umas ou de outras. Gosto de relembrar aquelas que mais me marcaram e que melhores recordações da infância e da juventude me deixaram. Entre elas, estão as vindimas, o pisar mosto/bagaço no lagar, ou na lagareta (como também lhe chamavam na minha aldeia), o lavar das pipas, o tirar do vinho, o fazer da aguardente. Rituais em que a alegria se fazia sentir e a cooperação e ajuda entre famílias e pessoas acontecia regularmente de forma emergente.
Nesta perspetiva o fazer da aguardente deixou em mim muitas recordações, as quais guardo religiosamente na minha mente. Se bem que na minha meninice ainda havia o aguardenteiro, ou seja, o homem que andava de casa em casa com os potes, mesmo que ele não fosse o proprietário, a fazer a aguardente. A verdade é que, à medida que o tempo foi passando, a aquisição de potes foi proliferando e uma boa parte das casas rurais já os tinha para uso, nem sempre exclusivo, é certo.
Para além do retirar o bagaço do lagar/lagareta, o ritual da aguardente começava com a construção da fornalha, onde iria ser colocado o pote. Sempre um lugar abrigado e funcional, onde as tarefas de carregar e descarregar se tornassem mais fáceis. Carregar o pote exigia algum cuidado, sobretudo com a colocação da palha/colmo no fundo, antes de ser introduzido o bagaço para que este não se pegasse. Mesmo assim, muitas vezes acontecia, o que constituía uma grande chatice e uma duplicada trabalheira!...
A grande fogueira inicial para fazer ferver o pote era fundamental. Quando a grande rolha de cortiça saltava da boca do pote, estavam reunidas as condições para ser colocada a cabeça e ser iniciado o processo de destilação. Mas, para além da água fria e do betumar a união do pote com a cabeça, com massa de farinha para que vapor não saísse por ali, o que não podia faltar era a palha/espiga de centeio na extremidade do tubo por onde iria sair a cristalina e quente aguardente. E quando os primeiros pingos surgiam, a prova era para toda a gente presente. E, habitualmente, todos diziam “que boa está”. A partir daí, o importante era manter o chama constante, evitando oscilações na fervura e que o pote não “bufasse” a qualquer instante. Esta manter-se-ia até que a qualidade da aguardente fosse como o lavrador queria. Claro que a prova acontecia e a qualidade era também atestada pela labareda que o lume fazia.
Este era o período em que as pessoas mais se juntavam à volta do pote e provavam, assavam e petiscavam. O convívio era salutarmente evidente, bem como a partilha gastronómica frequente. O pão com nozes, os ovos e as batatas assadas no borralho, os marmelos, as peras, o frango…. Enfim, comer e beber como o ambiente impunha para o pessoal entreter. Nos bancos, tantas vezes improvisados, os amigos sentados ficavam, até parecendo que a “adorar” o pote estavam.
E, no final, a tirar/descarregar o pote ajudavam. Na verdade, tratando-se da última tarefa ligada ao tempo quente, esta tornava-se divertida, potenciando a interatividade positiva entre a gente.