As obras de remodelação da centenária estação ferroviária de Mirandela estão, praticamente, concluídas. Faltam, apenas, os últimos retoques para que esta, que foi, durante tanto tempo, a grande porta de entrada e de saída da Cidade do Tua, um ponto de encontro e de confluência de gentes e culturas, abra ao público já no início de 2024.
Recorde-se que foi graças a esta estação intemporal, inaugurado em 1887, que a alheira de Mirandela partiu em busca da fama, viajando sobre carris até aos quatro cantos de um rústico Portugal, conseguindo, assim, conquistar o epíteto de ex-líbris do concelho, não havendo, hoje em dia, quem não associe este célebre enchido com a cidade que lhe empresta o nome.
No renovado edifício, que transpira, agora, contemporaneidade, dado os espaços abertos, de pé-direito, as transparências nas escadas e traços minimalistas a gritar século XXI, foi, propositadamente, decidido manter e bem, os traços seculares caraterísticos como as armações de madeiras, os azulejos azul Picasso originais, as várias lareiras, certos elementos das cozinhas como uma lava-loiças, bem como as decorações do teto de várias divisões, em gesso, de inspiração retro. E é, precisamente, essa mistura entre o novo e o velho, o clássico e o moderno, que eleva a obra de restauro a um nível de excelência não muito habitual nos dias de hoje, já para não falar nos equipamentos tecnológicos ultramodernos a fazer lembrar o Tate, galeria londrina onde repousam, a título de exemplo, obras de Matisse, Chagall e Francis Bacon, que nos forçam, no bom sentido, através da arte, a aprender mais sobre nós próprios.
Convidada a Comunicação Social para conhecer o futuro espaço museológico de referência da cidade banhada pelas margens do Tua, a visita foi guiada pela voz do conhecimento intrínseco do próprio autor do projeto de arquitetura.
“Durante a obra fomos descobrindo certas situações que não estavam previstas, pois só ao começarmos a retirar partes que estavam demolidas, é que fomos descobrindo o edifício e, assim, as soluções construtivas tiveram de ser readaptadas, sendo que o nosso objetivo principal era manter a memória do edifício”, fundamenta Nuno Sousa, que elogia o empreiteiro por “cumprir o projeto na íntegra”.
Orgulhoso por ver concluído com mestria o seu empreendimento, o responsável sustenta, ainda, que “as intervenções face às novas funcionalidades de espaço museológico e de conciliar a mobilidade da Linha do Tua obrigou-nos a estudar soluções arquitetónicas bastante minimalistas para não interferir naquilo que é a história do edifício, mas, ao mesmo tempo, dotá-lo de condições para essas mesmas novas funções”.
E, apesar do Covid ter interferido com as obras na Estação, a verdade é que nem a pandemia conseguiu demover o trabalho de equipa dos profissionais envolvidos na requalificação. "Em termos de projeto, foi cerca de meio ano. A nível de execução de obra, foram dois anos, mas tivemos a infeliz coincidência da pandemia, em que estávamos todos em casa e isso foi uma agravante, do ponto de vista do trabalho em equipa, já que era mais difícil de desenvolver o projeto nessas condições, mas conseguimos”, manifesta o arquiteto, que exemplifica, em concreto, alguma da tecnologia mais avançada disponível que foi implementada na estação como “um sistema de aspiração e deteção de fumos, ao nível da segurança contra incêndios”, “temos toda a iluminação cénica, específica para espaços de museu e espaços de exposição, temos o sistema de AVAC (Aquecimento, Ventilação e Ar Condicionado) que trabalha com umas grelhas muito finas, quase impercetíveis” e, ainda, colocaram-se “caixilharias de madeira para manter a imagem do que era antigamente, mas usando uma tecnologia de corte térmico à semelhança das janelas que, atualmente, utilizamos para cumprir a eficiência energética necessária”, para além do “sistema de gestão da iluminação, climatização e audiovisuais”.
Filha do chefe da Estação Ferroviária, Graciete recorda tempos de outrora com sentimentos ambíguos de nostalgia e felicidade
Sempre com um sorriso no rosto, carregado de visível “emoção”, Graciete Veiga foi uma das últimas moradoras do imponente edifício onde, na altura, residiam várias famílias. Filha do chefe da estação de comboios, só partiu aquando do seu casamento, em 1976, mas recorda o tempo de “Menina e Moça” com saudades, em que ela e a irmã se passeavam pelo soalho de madeira, pelas escadas em caracol, lavadas incontavelmente, ou pelo altivo telhado, onde lia e estudava, inspirada, certamente, pelas vistas intermináveis que iam bem para além do horizonte de Mirandela.
“Vejo esta obra de bom agrado, já é a segunda vez que cá venho, a primeira vez foi uma emoção maior, mas continua a ser. E recordar, cada vez que subia os degraus, o tempo que passei naquelas escadas, as vezes que as lavei, o tempo que nos juntávamos a trabalhar naquelas escadas e eu e a minha irmã a lermos os livros “O Crime do Padre Amaro” e da Sarah Beirão, enquanto as vizinhas teciam as suas rendas”, recorda, melancólica pelo passado, mas imbuída por um certo grau de satisfação, pela visão da obra consumada, a convidada mais antiga desta tour guiada pelas mãos e explicações do arquiteto Nuno Sousa.
“Na cozinha, havia uma janela que dava para o telhado e eu, de manhã, levantava-me e era para lá que eu ia preparar os meus testes e fazer os meus estudos e, mesmo ao fim da tarde, sentava-me no telhado e era lá que eu estudava”, lembra a viajante do tempo que confessa que a cereja no topo do bolo seria “ver na parte exterior uma máquina do caminho-de-ferro que, quando foram festejados os 100 anos da linha, foi prometida para Mirandela”.
Uma obra de 2,5 milhões de euros, cujo retorno financeiro-turístico será, decidida e incomparavelmente, superior
Quando ao budget, a remodelação da estação, cujas obras arrancaram em junho de 2021, foi orçada em 2,5 milhões, tendo sido comparticipada em 85 por cento pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional.
“Estamos a falar de cerca de dois milhões e meio, contas finais, é a nossa previsão, o piso inferior (rés-do-chão) foi uma componente na ordem dos 900 mil euros, o piso superior foi na ordem do milhão e 300 mil euros, mais a revisão de preços, por isso, será esse, mais ou menos, o valor em que ficará esta obra”, contabiliza o vice-presidente da autarquia. Contudo, segundo Orlando Pires, “há uma terceira componente” que será mapeada no Norte 2030, referente ao espaço envolvente. “Iniciámos essa obra ainda este ano, mas, entretanto, o empreiteiro não conseguiu dar resposta à necessária execução e, por isso, a terceira fase ficará para o Quadro Comunitário 2030 e poderá ser uma das obras que fará com que o nosso orçamento, em 2024, tenha uma revisão em alta”, exprime o entrevistado que assinala que, desde 2018, até aos dias de hoje, “o município de Mirandela fez um investimento de cerca de 30 milhões de euros com uma taxa de financiamento na ordem dos 85 por cento” em fundos comunitários, o que dá, em termos de “capitais próprios”, investidos pela autarquia, um valor a rondar os seis milhões de euros.
Concluído o ponto de situação da requalificação da Estação Ferroviária, quer a nível de obra, quer a nível de orçamento, foi a vez da autarca local assumir as rédeas para falar de ambição, do futuro e de execução.
"Esta obra de reabilitação era muito desejada por todos os mirandelenses, é um espaço de visita, mas, também, um espaço de memórias de todos os que passaram por aqui, de todos aqueles que viveram aqui e a ferrovia faz parte da nossa vida enquanto mirandelenses e isso, obviamente, enche-nos de orgulho e vamos abrir o quanto antes para que toda a gente possa partilhar deste sentimento que nós estamos a ter", confidencia Júlia Rodrigues, anunciando, simultaneamente, o desejo de providenciar uma maior relevância à alheira, dando-lhe o devido destaque naquele que será, em primazia, um espaço museológico.
“Há aqui um compromisso de termos um espaço dedicado à alheira, muito ligada à ferrovia e ao transporte da própria alheira que saía deste entreposto comercial transportada em caixas” e colocar em exposição “tudo aquilo que diz respeito a estas memórias vai ser interessante porque muitas das pessoas que visitam Mirandela perguntam se não temos aqui nenhum espaço onde visitar alheiras? E, realmente, não temos e há que dar a Mirandela e a todos os que nos visitam esse sinal de que a alheira é um património que é de todos”, considera a edil mirandelense que, não obstante, demonstra a clara intenção de efetivar uma parceria com a Comboios de Portugal (CP), no sentido de colocar, em exposição, peças que respirem um passado de ferrovia.
“Nós já temos uma listagem de peças que a CP nos poderá emprestar ou ceder e estamos a trabalhar nesse sentido”, comunica, assertiva, Júlia Rodrigues, reiterando, no entanto, que, “para já, vamos abrir com a exposição dedicada à obra porque temos material de qualidade para o fazer".
Só falta, agora, inaugurar a Estação Ferroviária de Mirandela e celebrá-la com um vastíssimo leque de exposições com peças e autores de renome, pois a qualidade é, presentemente e graças à obra feita, inerente ao edifício e devido à tecnologia de ponta instalada, está, certamente, mais que preparada para acolher da mais singela peça à mais dispendiosa obra de arte.